A realidade da vida contemporânea tem acarretado no advento de um conjunto de alterações de alcance extremamente profundo nas relações humanas, especialmente nas últimas duas décadas.
Tratando-se de analisar essas mudanças sob o espectro das relações laborais, observa-se nesse processo de intensificação do esforço e do empenho laboral, um desgaste ainda mais substantivo, sobretudo quando passamos a analisar o perfil do trabalho de um operador muito conhecido de todos nós: o síndico.
Quando este administrador deixou de atuar como simples voluntário para se transformar em uma pessoa que passou a alienar a sua força de trabalho, ele migrou automaticamente para a categoria dos denominados “agentes econômicos”, ou aqueles que contribuem significativamente para a geração da riqueza de uma nação.
Ademais, o tempo anteriormente destinado pelo síndico a atividades próprias ao descanso, ao ócio produtivo e ao convívio familiar, acabou sendo apropriado paulatinamente pelo trabalho da gestão condominial, também quando esse administrador passou a gerir até mesmo mais de um condomínio, ou até mesmo dezenas dessas estruturas residenciais, comerciais ou mistas.
De ser observado que o movimento de apropriação desse tempo de descanso do síndico não se consolidou de forma abrupta ou violenta, mas sim de maneira sorrateira e sutil, lentamente, porém de forma incisiva e crescente, não tardando a gerar resultados negativos e deletérios para a saúde física e mental do gestor condominial.
A partir da chegada das ferramentas de gestão tecnológica como aplicativos, mensagens em tempo real, internet e telefonia celular, todos os stakeholders que orbitam no entorno da gestão condominial passaram a demandar o síndico com maior intensidade, assim ocorrendo com moradores, administradora, prestadores de serviço, funcionários, visitantes, agentes públicos e tantos outros colaboradores e interessados no processo administrativo e negocial peculiar aos condomínios edilícios.
A tecnologia digital modificou a organização do trabalho, bem como a noção de tempo e de local da prestação de serviços. O local de trabalho – espaço físico – não existe mais para muitos síndicos, cada vez mais conectados, dentro e fora do horário laboral. O trabalho não se limita mais ao tempo passado no condomínio. Limites físicos, espaciais e horários de trabalho não são mais fronteiras entre vida profissional e pessoal: eles se sobrepõem, atestando a invasão do mundo do trabalho no universo residencial, ou seja, no espaço onde os síndicos residem.
Assim é que sob a direção dessa revolução tecnológica, os síndicos passaram a ser acionados de forma ininterrupta, com sucessivas chamadas on line, sejam as enviadas virtualmente, sejam as agendadas e realizadas sob o formato de reuniões presenciais ou remotas.
Destaque-se ainda a demanda pela obtenção de conhecimento, capacitação e atualização profissional, tudo isso somado a um ambiente de expressiva litigiosidade interna e externa, causada por inúmeros detratores dos princípios da boa convivência nos condomínios.
Nesse contexto, o descanso do síndico foi sendo relegado a um segundo plano e frequentemente interrompido, com acréscimo de sobrecarga de trabalho, gerando elastecimento exponencial da jornada laboral.
Essa prática incessante, muitas vezes invisível aos olhos dos reais destinatários de sua prestação de serviço, desenhado sob a forma de um labor em parcelas, culmina por implicar no aviltamento gravoso e direto de uma relevante conquista civilizatória: a limitação da jornada de trabalho.
Na França, decidiu-se em 2017 que o trabalhador não é obrigado a aceitar trabalhar em sua casa, nem a instalar em sua residência ferramentas ou instrumentos de trabalho. Naquele país, portanto, recentemente, construiu-se a concepção de um novo direito social: o direito à desconexão.
No Brasil, o repertório jurisprudencial do TST reconhece o direito à desconexão laboral especialmente no que se refere a aspectos associados a hipóteses de sobreaviso, emprego de telefone celular corporativo, em que ficou caracterizado o estado de alerta permanente do trabalhador e sua disponibilidade a todo momento, o que potencialmente viola seu direito à saúde e ao repouso.
Na mesma esteira, nossos tribunais vêm identificando na violação ao direito à desconexão, causa apta a gerar prejuízo e, por via de consequência, direito à indenização por dano existencial.
Conquanto em nosso país ainda não tenhamos a consagração do direito à desconexão em leis específicas, como ocorre na França, a mais recente redação do artigo 6º da CLT passou a reconhecer nos “meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão”, instrumentos de equiparação da situação de subordinação e supervisão do empregado. O trabalho realizado fora do local de trabalho, mas por meio de e-mail, WhatsApp ou outros aplicativos de comunicação está enquadrado dentro da jornada de trabalho.
A Constituição Federal da República enuncia, dentre os direitos fundamentais sociais, a prerrogativa ao trabalho digno e o direito ao lazer, bem como parametriza o limite de jornada laboral semanal, o que implica, por via de consequência, em consubstanciar o direito ao descanso a todas as espécies e categorias de trabalhadores.
Assim é que, empregados ou não, empresários ou autônomos, moradores “voluntários” ditos “orgânicos” ou mesmo os denominados “síndicos profissionais”, todos precisam, até mesmo para manter condições de saúde física e mental em perfeito equilíbrio, interromper suas atividades cotidianas para se voltar ao descanso do corpo, da mente, da alma e do espírito.
No âmbito dos condomínios identifica-se uma cultura de trabalho excessivo e uma crescente invasão do ambiente pessoal dos síndicos em face de diversas demandas e intensas atividades laborais, evidentemente potencializadas e aumentadas pelo avanço da ciência e da tecnologia.
Essa realidade impacta de forma negativa a saúde física e mental dos síndicos, demandando a necessidade de uma mudança cultural que valorize o equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Ademais, sabe-se que existe uma forte relação entre a falta de descanso adequado e o surgimento de doenças ocupacionais, estresse e redução da produtividade.
Por óbvio que não estamos falando de direito a férias, na medida em que o síndico não é empregado, nem mesmo se subordina às normas da CLT. Também não estamos cogitando de deixar o condomínio desprovido de gestão, eis que substitutos imediatos tais como o subsíndico ou quem a assembleia geral de condôminos indicar, de forma legítima, devem assumir o encargo temporário da administração condominial, para que nenhuma tarefa deixe de ser cumprida.
Seja, portanto, sob qualquer prisma que se pretenda compreender a importância do descanso, ou a relevância da desconexão digital, temos o exercício desse direito como absolutamente necessário e imperativo, tanto no sentido de que possamos contar com síndicos mais saudáveis, física e mentalmente equilibrados, tanto na direção da obtenção de resultados mais efetivos no processo de administração dos condomínios edilícios.
Autor
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Advogado. Especialista, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP. Responsável pela capacitação de mais de 5.000 profissionais no segmento condominial em todo o Brasil. Palestrante e Parecerista. Articulista de diversos periódicos especializados na área do Direito e da Gestão Condominial. Autor do “Manual do Síndico Profissional” (Editora Nelpa – São Paulo, 3.ª Edição, 2022). Atualmente é Vice-Presidente do Capítulo São Paulo da J. Reuben Clark Law Society e Presidente da Associação Nacional de Síndicos e Gestores Condominiais.