No tempo da intolerância

Recentemente, uma sentença proferida pela juíza Claudia Guimarães dos Santos, de São Paulo, condenou um locador a indenizar pelos danos morais que provocou quando proibiu o locatário de morar em um condomínio devido à sua orientação sexual. A locação já havia sido contratada.

A atitude desse locador é retrato desses tempos de intolerância, de ataques indiscriminados quanto a comportamentos, cor, religião, opção política. Há um profundo desprezo, até um desânimo enorme, em lidar com sujeitos que ajam assim, em pleno século 21.

O mundo evoluiu demais, a ciência alcançou estágios impressionantes e o jeito de viver e morar também mudaram. Porém, volta e meia, surge um fóbico, com comportamentos ofensivos, limitados, histéricos e inaceitáveis.

Não vamos examinar as causas, mas as consequências. Nas relações locatícias, é preciso saber como lidar com manifestações de estranhamento ao outro: são atos execráveis (no mundo todo) e ilegais, até mesmo afrontando a Constituição Federal, como veremos a seguir.

Evidentemente impedir a locação por tais razões consistirá em preconceito punível; estragar a relação locatícia já celebrada implicará – se pouco – na multa contratual, desde que ferido primordial dever do locador, de manter o uso pacífico, tranquilo do imóvel locado. Indenizações por danos emergentes ou lucros cessantes caberão.

Mas não é só, pois esse comportamento moralmente descompassado assume proporções maiores que as restritas ao relacionamento contratual. Esse comportamento afronta os fundamentos legais, a Constituição Federal, cujo artigo 3º traça como objetivo fundamental do país “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

No artigo 4º claramente repudia “terrorismo e racismo” (interessantemente colocados no mesmo inciso) e no artigo 5º proclama que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”, estando no inciso X a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sendo a violação desse preceito, indenizável; no inciso XLI que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. No inciso XLII, diz que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

Por que não me referi à homofobia objetivada nesta análise, mas citei o racismo (que merece profundos estudos em outra oportunidade)?

Porque, em outubro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento relatado pelo ministro Celso de Mello, decidiu: “Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989”. Ou seja, o STF entendeu haver identidade entre os crimes de homofobia e de racismo.

Além da nefanda convivência com esses agentes criminosos; além de se sujeitarem a condenações criminais; além das multas contratuais e indenizações por danos materiais, existe uma outra evidência, importante: essas condutas acarretam indenizações pelos danos morais impingidos.

Se antes, as provas eram mais difíceis; hoje em dia, são imediatas: basta uma imagem das câmeras de segurança, uma mensagem por WhatsApp, um vídeo por celular. Enfim, o faltoso não escapará, tudo estará documentado, à fácil disposição do julgador.

Diante dessas evidências, como lidar com o agressor?

Creio que de uma maneira, somente: no âmbito social, noticiando imediatamente a conduta às autoridades competentes, disponibilizando na forma da lei as provas do ilícito. No âmbito das relações privadas, contratuais, importante dar início aos procedimentos de comprovação do ato e da respectiva punição pela via judicial.

Afinal, além de abomináveis, esses atos somente trazem dor aos vitimados e espraiam malefícios aos demais. Devem ser punidos, legalmente, sem frouxidão. Não são brincadeira. Mais uma citação, agora de Martin Luther King (EUA, 1929-1968, assassinado em Memphis por um intolerante): “O que me preocupa não é o grito dos maus, é o silêncio dos bons”. Façamos o justo barulho!


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Autor

  • Jaques Bushatsky

    Advogado, é pró-reitor da Universidade Corporativa Secovi-SP e diretor de Legislação do Inquilinato da entidade. É presidente da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do Ibradim – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, fundador e diretor da MDDI – Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Autor de diversos livros.

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